A reoneração da folha de pagamento coloca em risco cerca de 60 mil empregos no setor calçadista. A projeção é do presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), Haroldo Ferreira.
Segundo a Medida Provisória 1202/2023, que acaba com a desoneração da folha de pagamento nos moldes atuais, a partir de abril o setor sairia de uma tributação de 1,5% sobre o faturamento para uma contribuição patronal à previdência de 15% sobre a folha de salários.
Apenas em 2024, a alta de impostos diminuiria em quase 20% a produção de calçados, explica Ferreira.
"Os custos dos produtos irão subir. A gente prevê a perda de 150 milhões de pares no ano. Isso aí é quase 20% da nossa produção. Essa perda de produção vai gerar perda de postos de trabalho. Diretamente na indústria, a nossa estimativa é que tenha uma perda de 20 mil postos de trabalhos diretos e, se nós analisarmos a cadeia, deve ser em torno de 60 mil postos de trabalho perdidos, caso seja reonerada a folha de pagamento".
Entenda
A desoneração da folha existe desde 2012. O mecanismo permite que empresas de 17 setores paguem de 1% a 4,5% sobre o faturamento para o governo em vez de 20% da Contribuição Patronal Previdenciária (CPP) sobre a folha de salários.
A desoneração acabaria em 2023, mas o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei que estende o benefício até o fim de 2027. O governo vetou integralmente a proposta, mas os parlamentares derrubaram o veto do Executivo, promulgando a lei.
O governo, por meio do Ministério da Fazenda, editou uma medida provisória, nos últimos dias do ano passado, que acaba com a desoneração para oito dos 17 setores hoje contemplados, entre eles o de máquinas e equipamentos e o têxtil e de confecção. A partir de abril, esses segmentos voltariam a pagar 20% da CPP sobre a folha de salários.
As empresas dos demais setores foram divididas em dois grupos de acordo com a atividade principal exercida por cada uma delas. A MP estabelece uma reoneração gradual para ambos até que, em 2028, todas as empresas voltem a pagar 20% sobre a folha para o INSS.
Para as empresas do primeiro grupo, a tributação partiria de 10% em 2024, passando para 12,5%, em 2025, 15%, em 2026 e, finalmente, 17,5%, em 2027. Para os negócios do segundo grupo, começa em 15% em 2024, sobe para 17,25%, em 2025, 17,5%, em 2026, e 18,75%, em 2027.
Autor do projeto de lei que estendeu a desoneração, o senador Efraim Filho (União-PB) disse que o desejo do governo de arrecadar mais não pode se sobrepor ao desafio de o país gerar mais empregos. Ele acredita que a melhor decisão seria o Congresso devolver a MP ao Executivo, uma vez que o Legislativo decidiu pela continuidade da desoneração recentemente.
"Essa decisão do governo já gera efeitos nocivos na economia. Já tem empresas desses setores que são os que mais empregam que estão puxando o freio de mão, suspendendo investimentos, cancelando a abertura de novas filiais, deixando de expandir os seus negócios. E, portanto, deixando de contratar mais pessoas, que é o principal objetivo dessa política pública", afirma.
A MP do governo, caso não haja mudanças, entra em vigor em abril. Até lá, vale a decisão do Congresso Nacional.
Em vigor desde janeiro de 2012, a desoneração da folha de pagamentos volta ao noticiário sempre que o prazo de concessão do benefício está perto de acabar. E, embora tenha impacto importante sobre a vida das empresas e o caixa do governo, o mecanismo não é tão conhecido por boa parte das pessoas. Mas, afinal, o que é a desoneração da folha de pagamentos?
A legislação brasileira diz que as empresas devem pagar uma alíquota de 20% para o INSS sobre a folha de salários. É a chamada contribuição previdenciária patronal. Isso significa que, se a folha de pagamentos de uma empresa custar R$ 100 mil, ela tem que pagar R$ 20 mil ao governo.
Como forma de reduzir os custos trabalhistas e incentivar o emprego, o Congresso Nacional aprovou, no fim de 2011, uma lei que criou a desoneração da folha. O mecanismo permite que as empresas de setores escolhidos pela lei possam optar entre a contribuição patronal de 20% ou o pagamento de uma alíquota de 1% a 4,5% sobre o faturamento — receita bruta — do negócio. Em geral, costuma ser vantajoso para as empresas optarem pela segunda alternativa.
O mecanismo, no entanto, foi criado com data para acabar, mas dada a sua importância para os setores contemplados, o Congresso Nacional aprovou a prorrogação da medida em mais de uma oportunidade. A mais recente delas ocorreu este ano. Para o economista José Luiz Pagnussat, uma segunda etapa da reforma tributária tem que discutir uma solução definitiva para o problema.
"Essa é uma questão importante, porque a folha de pagamentos pesa muito nas contas dos diversos setores. Numa reforma tributária mais ampla, com certeza, é necessário fazer uma redução forte do custo da folha de pagamento. Alguns países optaram por outros formatos de arrecadação tributária, de forma que não desincentive as empresas a contratarem os trabalhadores. Quando pesam muito os tributos na folha, você acaba desincentivando a utilização de mão de obra", destaca.
Aprovada no fim de 2011 durante o governo Dilma, a desoneração entrou em vigor em 2012. No início, incluía poucos setores. Mas o número saltou para 56 nos três anos seguintes. Em 2018, durante o governo do ex-presidente Michel Temer, 39 setores perderam o direito ao benefício, restando os 17 que hoje são contemplados. A princípio, a desoneração acabaria em 2020, mas foi prorrogada até o fim de 2021 por conta da pandemia da Covid-19. Quando estava para acabar, a desoneração foi estendida, mais uma vez, até o fim deste ano.
O capítulo mais recente da história está em andamento. O Congresso aprovou a renovação da medida por mais quatro anos, até o fim de 2027. O presidente Lula tem até 23 de novembro para sancionar o projeto. Defensores da proposta pedem celeridade do governo, alegando que as empresas precisam saber sob qual regime estarão sujeitas em 2024.
É o que explica o deputado federal Lucas Redecker (PSDB-RS). "O governo, com a sua morosidade, está prejudicando o planejamento e os investimentos, a geração de emprego das empresas para o ano que vem. Então, estamos aguardando urgentemente a sanção desta lei para que possamos ter a possibilidade da organização para o próximo ano dos investimentos das empresas — o que beneficia todo cidadão, gerando mais empregos", argumenta.
Entenda o embate entre governo e Congresso Nacional
A decisão do governo federal de editar uma medida provisória para acabar com a desoneração da folha de pagamento é apenas mais um capítulo dos desentendimentos com o Legislativo em torno do tema. No fim do ano passado, o Congresso Nacional aprovou a prorrogação do benefício para 17 setores da economia, até o fim de 2027. O Executivo vetou o mecanismo. Os parlamentares derrubaram o veto e, quando a questão parecia pacificada, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou a reoneração gradual dos setores —o que, na prática, reverte a decisão de deputados e senadores.
Segundo o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), o governo erra ao não enviar um projeto de lei para tratar da desoneração, preferindo fazer isso por MP, que tem força de lei imediata. "Nós adotamos iniciativas para manter aquela desoneração dos 17 setores. Houve um veto — e nós derrubamos o veto. Agora, com essa medida provisória, o governo tenta driblar essa decisão do parlamento. O governo não pode simplesmente ir para o embate e estabelecer uma nova oneração sem diálogo", critica.
Entenda a evolução do caso
Em vigor desde janeiro de 2012, a desoneração da folha de pagamento tem como objetivo reduzir a carga tributária sobre as empresas dos setores beneficiados, incentivando a geração de empregos. O mecanismo permite que as empresas optem pela contribuição patronal de 20% sobre a folha de salários ou o pagamento de uma alíquota de 1% a 4,5% sobre o faturamento — receita bruta — do negócio.
"No começo do ano, a empresa fazia as contas: 'Quantos empregados eu tenho e quanto isso implicaria em folha? Quanto eu tenho de faturamento e o quanto isso significaria em tributação?'. E se submetia ou não à desoneração da folha. Normalmente, os setores que têm bastante volume de folha acabavam optando por pagarem sobre o faturamento", explica Eduardo Natal, presidente do Comitê de Transação Tributária da Associação Brasileira da Advocacia Tributária (Abat).
Ao longo dos últimos 12 anos, o benefício foi prorrogado algumas vezes. A última delas no fim do ano passado, quando o Congresso Nacional estendeu a desoneração por mais quatro anos. Em 29 de dezembro, já durante o recesso parlamentar, Haddad anunciou uma medida que onera gradualmente os setores beneficiados pelo mecanismo.
A MP 1202/23 acaba com a opção de as empresas recolherem os impostos tendo como base o faturamento. O texto divide as empresas beneficiadas pela desoneração atual em dois grupos de acordo com o código de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), relativo à atividade principal de cada negócio.
Para as empresas que ficaram no primeiro grupo, a medida estabelece a volta progressiva da contribuição patronal entre 2024 e 2027 da seguinte forma:
2024 - 10%;
2025 - 12,5%;
2026 - 15%;
2027 - 17,5%.
Já para as que foram classificadas no segundo grupo, estabelece o seguinte calendário:
2024 - 15%;
2025 - 17,25%;
2026 - 17,5%;
2027 - 18,75%.
De acordo com o governo, as alíquotas reduzidas só valem para o primeiro salário mínimo de cada trabalhador. Isso significa que, no caso de um funcionário que ganhe dois salários mínimos, a contribuição patronal de 10% ou 15% em 2024 – a depender de qual grupo a empresa pertence – se dará apenas sobre um salário. Sobre o segundo, a empresa pagaria os 20%.
A partir de 2028, a contribuição patronal de 20% se aplicaria a todas as atividades econômicas, inclusive sobre o primeiro salário mínimo de cada trabalhador. Oito dos 17 setores hoje desonerados entendem que a MP sequer lhes permite a retomada da alíquota máxima. E que, portanto, a partir de 1º de abril deste ano — quando os efeitos da medida entram em vigor — terão que pagar os 20%.
Para Eduardo Natal, a decisão do Executivo gera insegurança para o setor produtivo. "É uma mudança de critério no último minuto do ano passado que certamente vai afetar o setor, que já tinha precificado, feito o orçamento para 2024, considerando a aprovação da prorrogação do regime da desoneração", avalia.
De acordo com o especialista, a edição de uma medida provisória contrariando decisão do Congresso Nacional se deve a uma busca do Executivo por aumento da arrecadação, de modo que a meta fiscal de déficit zero este ano seja alcançada e o governo tenha recursos para gastar no ano que vem.
"Vamos ficar nessa situação do governo querendo mais receita por causa das metas do arcabouço fiscal; e o setor privado tentando se virar do seu lado, com seu plano de negócio que já estava vinculado a essa desoneração que passou no final do ano passado" — ressalta.
Nos cálculos da Fazenda, a estimativa é de arrecadar R$ 6 bilhões com a reoneração da folha de pagamento.